quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Abre um ciclo

Abre um ciclo


Cai a noite cedo.
A última folha seca se desprende,
e a ventania a leva
num sopro leve, quase um adeus.

Aqui estou.
Vejo os últimos pássaros passando,
voando,
partindo...
Vão-se em silêncio,
formando no céu a letra V 
como versos que migram para longe.

A neblina fecha a cortina,
e o sol, cansado, se inclina,
iluminando apenas os vãos.
Atrás da janela,
fico.

Fecha-se um ciclo de cores,
de vida,
de amores.
A natureza se silencia.

Alguns dormem nos seus apogeus,
outros deixam sementes
entre nós 
antes de partir.

Alguns permanecem,
mudam de pele,
se disfarçam em brancos e cinzas.
Outros caminham à procura de migalhas,
outros, ainda, morrem de frio.

O vento é cortante,
gela as mãos,
e os rios se fazem espelhos de gelo.
A ausência do calor dói na alma
dos passageiros que passam
em silêncio sobre a terra.

E vão.
Desprende-se o que precisa ir,
e quem precisa ficar
segue o caminho branco da chuva,
com passos fundos
nas manhãs congeladas.

O sol, tímido, chega tarde 
e parte antes do fim do dia.

São as geadas que enfeitam
os galhos das árvores adormecidas.
Os pinheiros, destemidos ao solstício,
se deixam vestir pela neve.

Entre os vãos,
alguns se iluminam com bolas e luzes.
E o fim do ano,
tranquilo,
se faz passagem,
se faz renascimento.

Pois em cada silêncio da terra
há um sopro de recomeço.
E quando a última folha cai,
a primeira semente desperta.



  autora: Isabel van Gurp





  








domingo, 24 de novembro de 2013

Sonhos




               



O céu nos aproxima.
Encontramos nossas almas perdidas,
que voam nas brisas,
nas caladas das noites,
pelas surdinas,
pelas esquinas.

E abismos são encontros de vidas 
onde o desejo e o sonho se misturam.

Escutamos músicas e sinos,
anjos cantando em glória,
campainhas tocadas por sombras.
Nossas almas dançam, se tocam,
se amam 
e caem na luxúria.

Quando nossos corpos voam,
tornam-se animais em cio,
selvagens e sublimes,
inebriados de perfume e vício,
buscando no outro o gozo da vida,
a blasfêmia divina.

Misturando-se ao vento,
em acalento e afago,
passam pelas chuvas,
lavando os pecados,
soprando a brisa para o mar.

Nossas almas se encontram na cama,
escondidas do suor e da chama.
E tuas mãos no meu ventre
trazem o odor do ser 
pecado e renascimento.

O pecado me acompanha,
sempre,
em cada jornada.
E, como se fosse a primeira vez,
me misturo ao vento,
em afago e agrado.

Como as estrelas,
me escondo da chuva,
com medo da censura.
Fugi das nuvens,
me abri ao sol,
para sentir a cólera da tara.

Entreguei-me aos sonhos,
olhei para o céu,
para dormir.
Voo para te encontrar 
teu olhar me chama.

Misturo-me ao vento,
em acalento e afago,
me torno estrela cadente.
E em noites escuras, sem nuvens,
caio 
indecente, ardente,
para me tornar sereia.

Nado nua ao cair no mar,
deito sob o céu,
e me toco pensando em ti,
para poder sonhar com teu olhar.

Misturo-me ao vento,
em acalento e afago 
gozo,
me apago.

                  


                                               autora: Isabel van Gurp






































quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Auete

Auete


Em Homenagem à Consciência Negra

(por Isabel van Gurp)


Hoje é dia da Consciência Negra no Brasil.
Mas poderia  e deveria 
ser o dia da consciência humana.

Deixo aqui minha homenagem,
em forma de poesia,
a todos que vieram antes de nós,
aos que lutaram,
e aos que ainda resistem.

Bantu 
um dos idiomas da Angola,
linguagem ancestral,
cheia de ritmo, fé e sabedoria.

Seria também o idioma do Brasil,
se não tivesse sido banido pela dor,
silenciado pela força,
e apagado pela história

que tentou calar a voz de um povo.

Mas a voz Bantu vive 
nas mãos que dançam o tambor,
nas palavras que resistem no português,
no axé que corre nas veias,
e na memória que não morre.

Hoje, e sempre,
celebramos não só a cor,
mas a herança,
a alma,
e a força que construiu este país.




Auete

As Nossas Rosas em Prosas 


As nossas rosas,
em prosas, são prendas.
Foram oferecidas a Nzambi,
para um novo dia.

Kukia,
Oxalá,
o sol  muanha
nas manhãs desperta.

Auetu,
que sobe ao céu,
trazendo as cores de um nsambu,
iluminando a alma Awa,
espírito da terra.

Oxalá,
que está entre nós,
transmitindo toda a magia da vida.

Uns cantam, outros katecos;
uns voam e encantam,
outros sonham.
Todos amam.

Oxalá,

os pássaros são espíritos
do mar e da terra,
com o olhar de Ngana,
que separa e entrega
como cegonhas,
que trazem o destino.

Oxalá,

eles planejam nossos futuros.
Estamos nas mãos de Nzambi,
na essência que nasce
para mais um dia,
que floresce.

Oxalá, Xangô.

Oxalá,
lava os pés, nzumbi.
Auetu.

Enu binga katende.
Mais uma vez, peço ao espírito da terra
que seja benevolente,
que nos traga coisas boas.

Oxalá.

Na casa-terra Tongama,
Bô medipê bo,
Medipê,
Nahi noaie ête.

Para limpar as nossas almas,
Awa,
para este novo dia.

Iemanjá,
nossa Rainha do Mar,
Auete Nzambi.

Oxalá.

Assim seja.
Nzambi ikale ni enhe.
Assim seja.

E te me tebe ma bo,
E te ma bo me tebe ma bo.

Auete.




  autora: Isabel van Gurp


Oração de Nzambi e Oxalá

Nzambi,
Criador da vida,
Pai do sol e das águas,
ouça a voz que nasce da terra.

As nossas rosas, em prosas,
são prendas de amor e fé.
Oferecidas a ti, Nzambi,
para o renascer de um novo dia.

Kukia...
Oxalá...
Que o sol  muanha
se levante nas manhãs.

Auetu...
Que as cores do céu despertem,
que o nsambu ilumine a alma Awa,
espírito da terra,
mãe de todas as raízes.

Oxalá...
Tu que estás entre nós,
sopro invisível da criação,
transmitindo a magia da vida.

Uns cantam,
outros dançam,
uns voam,
outros sonham,
mas todos amam.

Oxalá...

Os pássaros são espíritos.
Vêm do mar, vêm da terra,
trazem o olhar de Ngana,
aquele que separa e entrega,
como cegonhas que anunciam destinos.

Oxalá...

Estamos nas tuas mãos, Nzambi,
na essência que renasce,
no dia que floresce.

Xangô,
leva justiça à casa dos homens.
Oxalá,
lava os pés de quem caminha cansado,
purifica os corações.

Auetu...
Enu binga katende...

Mais uma vez, pedimos ao espírito da terra:
sê benevolente,
traz-nos o bem,
espalha tua luz pela casa Tongama.

Bô medipê bo,
Medipê,
Nahi noaie ête.

Que nossas almas se lavem em tua fonte,
Awa,
espírito da terra,
neste novo dia.

Iemanjá,
Rainha do Mar,
mãe das ondas e dos sonhos,
leva nosso canto até Nzambi.

Auete Nzambi...
Oxalá...

Assim seja.
Nzambi ikale ni enhe.
Assim seja.

E te me tebe ma bo,
E te ma bo me tebe ma bo.

Auete.




Autora: Isabel  van Gurp










  autora: Isabel van Gurp


  • O termo Bantu (ou Banto) designa um grande grupo linguístico e cultural da África Central e Austral  incluindo povos de Angola, Congo, Moçambique e outros.

  • As línguas bantu foram trazidas ao Brasil durante a escravidão, especialmente com os povos kikongo, kimbundu e umbundu, que influenciaram fortemente o português falado no Brasil (palavras como cafuné, caçula, quitanda, fubá vêm dessas línguas).

  • Embora a cultura Bantu tenha sido reprimida durante o período colonial, suas expressões sobreviveram  nos cultos afro-brasileiros, na música, na culinária e na oralidade popular.