segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

Asfalto em Estado Bruto

 




Hoje eu subi bem alto
na vertigem do meu asfalto.

Me confundi com as pegadas das multidões,
fluxos cruzados nas calçadas rachadas,
corpos em trânsito,
olhos baixos,
pressa alta.

Segui o eco das sirenes,
o código vermelho das buzinas,
a trilha sonora caótica
que invade o peito
sem pedir licença.

O barulho é sujo,
estridente,
excessivo 
mas essa poluição sonora
me abastece
de adrenalina
e desgaste.

Eu me reconheço nesse caos.

Vejo palavras em overdose:
outdoors, telas, avisos, alertas,
letras piscando,
propagandas gritando,
frases vazias
que cegam
e ainda assim me dizem
 você existe.

Respiro esse ar pesado.
Gosto.
Porque ele dói
e confirma que estou viva.

O corre eterno
do nunca parar,
do não estar,
do tropeçar na alegria
sem tempo de senti-la.

Hoje eu desci bem fundo
na ferida aberta do asfalto.

Vielas cinzentas,
sujeira colada na pele,
gente que sobrevive
do resto do resto
do nada.

Rostos sem endereço,
vidas sem mapa,
corpos atropelados
pela abundância distraída
que passa rápido
demais para ver.

Afogados em vícios,
nobres apenas
na dignidade das migalhas.

Hoje caminhei no calor do asfalto,
senti o suor de quem sustenta o dia
com as próprias mãos rachadas.

Me encarei nos espigões de vidro,
na soberba vertical da cidade,
na elegância fria
de quem corre em linha reta
fugindo do sentir.

Queriam ser eu.
Eu também, às vezes, quis não ser.

Hoje contemplei,
sem filtros,
a tristeza crua do meu asfalto.

Vi os ninguém
estendendo as mãos
por restos,
por olhares,
por reconhecimento.

Eles seguem
porque precisam.
Porque respirar ainda é resistência.

Estão entre as multidões
que passam por mim
sem perceber
que eu também
sou alguém.


Autora: Isabel van Gurp 

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